sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Falando de mim

Falando de mim

Wellington Trotta
Sua voz pediu para que eu falasse de mim mesmo,
o que não é fácil, o que também não é difícil,
apenas surrealista, falar para alguém do que  em si
não percebe o que verdadeiramente seja ou é.
Você solicitou um dever psicanalítico, o que é bom,
mas que pode ser dúbio, difuso, confuso
e porque não mentiroso, aparente, sórdido.
Falar de mim para eu mesmo quando escrevo
constitui um ato de catarse, de pura emoção,
de um jogo em que forças antagônicas lutam surdamente,
de uma associação de interesses, sombras pairando sobre a realidade
 contradita, perdida com todo esse processo fora de si.
Falar de mim para os seus olhos que lêem e, portanto
comentar minhas frases é redundante,
isso já é feito exaustivamente pelo meu sofrimento,
pela minha luta em demonstrar o que sinto,
e como minto em não poder dizer tudo
o que não logicamente sinto.
 Sinto tanto que minto em não dizer palavras antigas,
 verdade, porém sentidas.
Falar de mim mesmo hoje é uma mentira, sofisma
que se elabora por substituir linguagem lógica.
Lógica, que lógica? Aquela do Aristóteles?
Isso não é uma fantasia para ser combatida
com uma outra do mesmo calibre.
A lógica aristotélica é uma oposição a Platão,
e eu sou uma oposição permanente a Aristóteles
porque apreendo Platão: o delírio como intuição
 navegando nas asas do mito, do irreal para dar conta do real,
do meu real fantasioso, o misteriosamente em mim mesmo.
Você pede para falar de algo que compreende
e intui pela inteligência que possui,
só se esquece, ou pelo menos não se lembra,
 exposição do beijo, o abraço apertado,
o tempo parado, as luzes esquecidas, o espetáculo dois a sós
 num mundo vazio para si de poucas emoções.
Pede que eu fale de mim como ato impiedoso
que devora os sentidos do bom senso, da razão.
Você implora minha razão, insisto, já lhe disse:
 não sou aristotélico, sou mito!
Sou construção permanentemente de mim mesmo,
por isso não posso de mim mesmo se quer falar.
Sou como a filosofia, uma luta de antíteses,
luta, puramente luta, puramente conflito,
ascese, visão do que hoje não é e amanhã não será,
que depois poderá ser, se for o que se pensa.
Não falo de mim porque sou muito pouco,
falo de você porque sou apenas um ponto,
no universo do seu eu, do que realmente é.
Se quero ser poeta só posso ler beleza,
se minha lente é o belo platônico só posso falar,
cantar perfeição, se só posso falar de perfeição,
 só falo, penso, canto, respiro, bebo você, só você.
Falar de mim diante de você é sacrilégio,
pecado que os deuses não nos ouçam,
pois a ira do Olímpio é uma tempestade insidiosa.
Sua lógica, sua razão: belas;
só que não menos confusas que o meu delírio,
 mesmo sendo pobre de rima, dedico
aos seus meigos olhos, que se não querem os meus,
por favor, fuja. Fuja silenciosamente, mas fuja.
Fuja sem piedade e seja feliz, apenas feliz.


2 comentários:

Marcantonio disse...

Gostei bastante dos poemas. Eles têm um tom muito próprio que, me parece, surge, digamos, de uma tensão entre o lírico e o anti-lírico, como se o eu-lírico se alternasse com um eu-filosófico que contém seus arroubos. Então, surgem aqui e ali imagens belas, como ondas súbitas em meio ao discurso de uma melancolia filosófica, mescla de ceticismo e cinismo que toma como falho ou apartado da vida o próprio ato de pensar filosoficamente.

Grande abraço.

Wellington Trotta disse...

Prezado Marco, sinceramente: generosidade sua. Um abraço.